segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Véspera

Ouve-se aquela insuportável musica do gás... Abre-se o olho e, milímetro por milímetro, vai se enxergando cada pedacinho do que a rodeia... Roupas espalhadas... TV ainda ligada... Por alguns minutos fica-se ali... Imóvel... Os pensamentos todos se misturando com o que se vê e ouve... Há um misto do que é “real” do que foi, do que será e dos sonhos... Sonhos sonhados apenas há alguns momentos ainda adormecidos... Sonhos adormecidos sonhados há muito... E sonhos vividos e vívidos ainda, mas... Mas... Sonhos que também passaram... E ainda tantos outros que parecem brotar... Latentes ainda... Talvez não sonho ainda... Talvez só uma esperança de novos sonhos surgirem...Imóvel fisicamente, tenta-se organizar tudo... Fragmentos de sonhos, televisão vomitando os mesmos excrementos, tentando incansavelmente fazer com que não se pense no que se pensa ou poderia pensar... Mas, como diria o Raulzito a respeito do rádio: é só desligar o botão...
Num primeiro movimento catatônico, senta-se à beira da cama... Maquinalmente passa-se a mão aos cabelos... Gesto bem útil... Se alguém o assiste terá uma imagem mais agradável após esse ajeitar e talvez se perceba também a desolação que levou ao gesto... Como é possível um gesto tão simples significar coisas tão opostas: preocupação com a imagem e desolação? Tudo mexido... Tudo revirado... Tudo confuso...
Levanta-se com passos incertos... E, segue-se o ritual matinal: coloca-se a água do café no fogo, e enquanto espera-se que a água ferva, segue-se o ritual de higiene... Olha-se no espelho próximo a pia... E, observa-se, todo dia, como se fosse uma grande novidade o que se vê... Cada dia é um diante do espelho... Sempre um estranho... Enxerga-se um novo sinal, um novo cravo, um outro inchaço nos olhos... Mas, cada pequeno e novo detalhe dão ao todo um ar estranho... E como negar que esse olhar... Mirar... Fitar o estranho no espelho não faz parte da higiene pessoal? Talvez poucos notem... Mas, o espelho proporciona muito mais do que apenas a verificação física... O espelho é sempre uma revelação!
Escuta-se a água ferver... E a cabeça acompanha o ritmo... Tudo misturado... E há tantos componentes explosivos... Melhor apagar o fogo... Melhor tentar como em alquimia misturar os ingredientes certos e transformar algo insignificante em algo valioso... Açúcar, pó de café, proporção, água, um coador... Hummmmmmmmm que cheiro bom o de café fresco! Às vezes, erramos na proporção, o cheiro é bom, mas o paladar denuncia o erro... Pode-se ajeitar: um pouco de leite, mais açúcar... Quem sabe adoçante, creme de leite... Manteiga... Chantili!
Segue-se o ritual, e cada um tem o seu. Se tudo deu certo, nesse primeiro momento, senta-se e degusta-se algo quentinho e saboroso... Pode-se estar sozinho ou acompanhado... Nunca importa... Dificilmente a cabeça estará vazia a espera do novo... Ela não para! É possível que se escute o falso roncar de alguém que já fora um sonho sonhado, vivido e vívido... Um sonho acordado que agora apenas finge dormir para adiar a visão do pesadelo que parece ter desfeito as malas onde antes parecia um lugar mágico... O mundo dos sonhos reais... O café com leite conforta o corpo e escorrega goela abaixo... Todo o aparelho digestivo parece em festa e é possível realmente sentir o conforto que o corpo sente... Mas, a cabeça... A mente... A mente não sabe o que mente e o que é real... No mundo dos sonhos é sempre tudo possível... No mundo dos sonhos os pesadelos também sabem se fazer presentes... De grego... Mas, presentes...
A cada amanhecer diante do espelho, escutando-se o borbulhar do que ferve, estamos todos mesmo sem saber a esperar... A esperar que tudo se harmonize... Que a alquimia dê certo... Mas, cada momento desses que se repetem religiosamente todos os dias de nossas vidas... É apenas a véspera de seja lá o que for... Alegre ou triste, satisfeito ou infeliz, acompanhado ou só... Todo dia diante do espelho... Diante de nós, quem sabe... Estamos diante de nada! Vivemos apenas a véspera de algo... Esse algo que nos surpreenderá a qualquer momento... Talvez... Só talvez, esse momento de que falo pode não ser a véspera de algo... Mas, o grande momento... Se quiseres, num dia desses, numa véspera qualquer... Alguém mire o vazio do espelho e faça desse momento o fato...
Afinal quem é que decide o que é a véspera e o que é o fato?

Um comentário:

  1. Que prazer imensuravel em ser o primeiro a te seguir e mais ainda em ser o primeiro aki escrever
    tudo q vc escreve é super verdadeiro e intenso nao sao precisas tantas palavras pra descrever, apenas sentir!
    te adorooo! desse que espera ta sempre por aki perto de vc, no aconchego de suas asas!
    Joab de Paula

    ResponderExcluir